Não sei em qual lugar da montanha estou, mas a fé não
faltará.
Há alguns dias, ao acordar, como de costume, falei com Deus, levantei-me e fui até a janela. Quando a abri, vi que o dia estava chuvoso. Um dia frio.
Fiquei lá por alguns minutos, olhando as folhas caídas no chão molhado e
ouvindo o barulho da rua. A brisa fria que vinha de encontro ao meu rosto trazia o cheiro
de terra molhada, cheiro de paz. As plantas estavam cobertas de orvalho. As
gotas d'água, que caiam do telhado, faziam música. Desse tipo de música que
toca a alma da gente. Os pássaros estavam quietos... quase um convite a ficar
quieta também no meu canto. Os pensamentos foram longe. O orvalho, o vento, os sons, os
pássaros... Um dia vestido de água. Vez em quando faz bem ter dias assim.
Eu sei que o sol está lá.
De repente, o cheiro de café desviou meus pensamentos. Apressei-me para
o banho. Enquanto eu vestia uma roupa, meus olhos passearam pelo quarto... A
velha caixinha de madeira num canto do armário pedia para ser aberta. A
caixinha onde guardo as cartas que recebi de minha avó.
Sem dúvida, era um dia para recordar. Um dia perfeito para ler cartas. Após tomar o café e participar da conversa que acontecia na cozinha, voltei para o quarto, peguei a caixinha e acomodei-me na cama. Algumas cartas, pétalas de flores secas e um terço com algumas contas quebradas, de muitas Ave-Marias, de uma vida de oração. Os papéis velhos, amarelados pelo tempo, já impregnados com o cheiro da madeira são provas de um amor que não fenece, de um coração que ficou aqui. Testemunhas do que está gravado em outra caixinha... Esta que bate, que dói e que cabe um mundo. São provas de que a tinta das esferográficas foi além.
Minha avó morava no interior do estado e eu fui estudar na capital. Não tínhamos telefone. Nesse tempo, esse aparelho fantástico, que nos faz ouvir a voz de quem está longe, era um artigo de luxo. Na falta de telefone, nossas vozes ecoavam nos papéis e adentravam nossas almas. Eu sentia o cheiro do talco que ela usava, misturado às pétalas que enfeitavam as cartas. Era uma espécie de ritual... um desejo de perfumar a vida, as dores, as alegrias, a saudade... um jeito de criar a presença. Ainda posso ouvir a sua voz tão querida em cada palavra escrita, do jeitinho que ela sabia. Pouco sabia, mas me bastava. Não entendia muito de gramática. Entendia bem de costurar, de cuidar... um talento incrível. É um mistério o sentimento que faz com que nos encantemos por outra vida como se fosse a nossa. Que nos faz felizes como a flor que treme orvalhada. Ser alimento. Isso é grande.
Há muita beleza no ato de enviar e receber cartas. Às vezes, as notícias eram boas, outras
vezes não. Boas ou ruins, as lágrimas sempre me faziam companhia. Nesses
momentos, eu partia para onde está o meu coração, como faço agora. Entendo
bem o que disse Rubem Alves: "... Cartas são escritas não para dar
notícias, não para contar nada, mas para que mãos separadas se toquem ao
tocarem a mesma folha de papel". Isso era tudo. É tudo. Aleatoriamente, peguei uma carta. É uma carta muito especial, de um tempo de
muito desânimo. Eu pensava em desistir. Estava longe de casa e ainda
pouco acostumada à vida na capital. Um peixe fora d'água. Uma menina,
apenas uma menina querendo voltar para aquele lugar onde era tudo mais fácil,
onde havia o calor do colo materno, o conforto da segurança. Todo esse
sentimento era enviado para ela através das cartas. E eu rezava para que a resposta
fosse: "Volte". Pelo contrário, ela dizia: "Fique aí. E seja
forte". Uma carta repleta de mil palavras de força e incentivo. Ela tinha
razão. Eu sentia medo do novo, das mudanças. Chorei muito, mas fiquei e enfrentei cada
medo com coragem. Tantos ensinamentos... Minha avó era uma mulher cheia de
virtudes. Ler: "Minha filha, não há montanha alta
demais quando botamos fé na subida. Nunca desista de lutar. Tenha coragem. Você
pode", era tudo que eu precisava. Ela acreditava em mim mais do que eu. Assim,
tive que aprender a acreditar também.
Hoje, eu sei... o véu que veste a minha alma é de esperança. Foi
costurado cuidadosamente pelo tempo das dificuldades, das alegrias e,
sobretudo, pelas lições aprendidas em um “livro”, de único exemplar, chamado
"Maria, minha avó". Nesse "livro", aprendi que o amor é
isto: colocar em meu peito um coração que não é o meu... O meu está lá, está
ali... E por estar, enche-me de vida.
Carrego em mim tudo o que aprendi com ela, o valor da gratidão, da
amizade, do amor, do respeito, da honestidade e da solidariedade. Minha
avó falava da importância de olhar para os outros e mostrar o coração. De dar
lugar ao amor, à confiança, à segurança... Ela dizia que pelo caminho eu encontraria pessoas de todos os tipos, algumas
me fariam bem, outras não. E que a justiça divina não falha, que a paciência
e o tempo trazem todas as respostas, colocam as coisas no lugar.
Reler cada palavra desta carta me fez recordar dos dias lindos, dos abraços, do
silêncio que falava, do olhar cuidadoso. Alimentou em mim a certeza de que dias
muito mais lindos virão. A certeza de que não paro aqui. Jamais desistirei de
lutar. Não sei em qual lugar da montanha estou, mas a fé não faltará. Se, por
qualquer que seja a razão, eu escorregar e descer um passo, em seguida subirei
dois. É para o alto que vou. É para frente que caminho.
As cartas estão todas aqui... As que leio e as que sinto, guardadas em suas
respectivas caixinhas... Sempre serão lidas, sempre serão força, sempre
serão voz, sempre serão luz... Testemunhas. O tempo não apaga.
E o dia chuvoso e frio fora aquecido... Toquei as mãos daquela que é amada, que se foi, que está!
Janne,
ResponderExcluirNão há, não pode haver, diante de tanta sensibilidade, quem possa ficar indiferente à imensa beleza que habita o seu ser. Uma beleza que transcende o seu olhar, que de tão claro e límpido, consegue enxergar, na vida e nas pessoas, a sua essência.
Você é simples, e ao mesmo tempo profunda e coerente em suas palavras e atos. Por isso seus textos traduzem sempre o seu modo de ser e de viver. E em especial este, que retrata a saudade de um ente querido, a sua avó Maria, através das cartas em que ela, com simplicidade e amor, lhe motiva a jamais desistir de seus objetivos na vida.
No lindo texto, você consegue traduzir com simplicidade toda a beleza desses ensinamentos, e o quanto eles têm lhe ajudado ao longo do caminho.
Há tantos dons em você: saber ouvir; pouco falar; muito refletir; nada pedir; tudo esperar... em Deus.
Aprendo, a cada dia, o valor de uma amizade verdadeira, onde não há espaço para meias-palavras, onde o que não se diz é o que se compreende...
Tê-la como amiga, sendo você uma pessoa tão especial, me faz sentir abençoada por Deus. Que Ele a conserve sempre assim, tão sensível e verdadeira.
Obrigada por sua cumplicidade!
Sua amiga Edinha.
Amiga, tudo o que você disser ficará gravado no coração. Você é uma das pessoas mais sensíveis que já conheci. E quanto à beleza a qual se refere... sou cheia de defeitos, mas tento ser um pouco melhor. Todo dia é dia.
ExcluirEu disse ao professor Borto que quando escrevo quero tocar, quero alcançar, fazer sentir o que senti.
Se é dom, eu não sei, mas a vida tem me ensinado que é o jeito de viver melhor... ouvir, refletir, falar o essencial, dar sem pedir... e esperar o tempo de cada coisa.
Sinto-me abençoada por tê-la por perto. Você é muito especial.
Muito obrigada pelo carinho.
Abraço
Querida Janne,
ResponderExcluirConforme registros que fiz anteriormente, sua sensibilidade é realmente algo contagiante. Como é lindo e emocionante a maneira que vc relembra da querida avó Maria, as caixas, as cartas, as pétalas...sem dúvida ela foi a sua grande timoneira, quão belo é o seu reconhecimento. Felizes os que tem o prazer de compartilhar a leitura dos seus textos.
Fraterno abraço!
Heyder Dantas
E todos os registro feitos foram de muita gentileza e cuidado. Muito obrigada. Abraço!
ExcluirSempre um prazer impar ler seus textos e poema, querida poetisa.
ResponderExcluirParabéns!
Você tem o dom divino nas letras.
BeiJanessss em teu belo e doce coração.
Jane Di Lello.
Querida Jane, prazer impar é recebê-la em meu blog.
ExcluirSei muito pouco ainda... mas acredito que o mais importante é que foi entendido e sentido.
Muito obrigada. Beijo.
Nobre Janne!
ResponderExcluirAssim como Edna, acima, repito. não há como não ser tocado por esta sensibilidade, citando meu amadissimo Rubem Alves,e uma mistura de narrativa de Jorge Luis Borges que faz com que o leitor seja levado ao contexto narrado.
Não tive como não me sentir "sentado naquela cama", ouvindo a chuva, levando pétalas secas ao nariz para ver se ainda restava algum perfume. Garanto que em sua memória estava, Abrindo velhas folhas com escrita que lembra o poeta pernambucano Jessier Quirino em " Vou-me Embora para o Passado", em uma analogia à famosa poesia de Manoel Bandeira,
Lendo senti a mesma saudade que voce deve ter sentido e gravou-se em mim a frase de Maria: "... não há montanha alta demais quando botamos fé na subida. Nunca desista de lutar. Tenha coragem. Você pode",!
Confesso: Sou um leitor voraz. leio tudo o que meus amigos me mandam, me indicam, necessito de palavras, escritas mais ainda.
Mas como já afirmou Borges: Não existe mau escritor... existe mau leitor...!"
Obrigado por partilhar de tanta sensibilidade, emoção e percepção de detalhes que se tornam significantes por serem cheios de significados,
Foi um privilégio ler algo tão belo.. Do fundo do coração para outros corações,
Com afeto e admiração!
Borto
Passo Fundo - RS -
Professor, fiquei feliz com o seu comentário. Ao escrever o texto, tive a intenção de compartilhar o meu momento as sensações que tive... um convite a fazer a mesma viagem que fiz. Foi exatamente assim, tentei sentir novamente o perfume, abri os velhos papéis, fechei os olhos e viajei. Quando decidi escrever sobre as cartas lembrei-me da linda citação de nosso amadíssimo Rubem Alves, que agora se faz presente através de suas obras e aprendizados deixados... impossível não inclui-la, porque é assim que sinto, o toque de mãos.
ExcluirMuito obrigada por seu olhar sensível... por alcançar os significados, a importância do que está por trás das palavras.
Ainda não escrevo como quero. Ainda tenho muito a aprender... tenho muita paciência e vontade.
Um privilégio tê-lo aqui.
Abraço!
Concordo com os comentários anteriores. Viajei com emoção nos fatos narrados. Não vou manchar a beleza do seu conto com palavras repetitivas. Meu anjo, você é o que é por tudo isso. Fico encantado com a simplicidade da sua escrita.
ResponderExcluirEscreva mais.
Abraço
Manchar? Jamais! rs. Você é um amigo muito querido e suas palavras são sempre bem-vindas.Obrigada por estar por perto. Abraço.
ExcluirAmiga Jane, você é uma grande poetisa. A sensibilidade e ternura das suas palavras tocou profundamente meu coração. Siga sempre em frente. Escale essa montanha sem medo dos obstáculos, buscando força e coragem naquela que a ensinou a descobrir todo seu pontencial. Você é uma pessoa encantadora por dentro e por fora. Bjs amada. Zélia Leite
ResponderExcluirConhecendo você como eu conheço e sabendo que você é uma pessoa muito sincera e diz o que sente, fico feliz por ler cada palavra sua. Obrigada. Bjo.
ExcluirQuerida Janne, foi um prazer poder ler seu texto, onde vc mostra sua alma, poesia,encanto,sensibilidade, e uma beleza comparada as flores orvalhadas que voce menciona .
ResponderExcluirParabens ,me emocionei com suas palavras.
um grande abraço amiga... (Rose Diniz)
Obrigada pela visita, Rose. Abraço!
ExcluirBonito texto
ResponderExcluirA tua forma de escrita é muito boa.
A beleza está no simples.
Ao ler senti-me envolvido nele por completo, por instantes não sei se ria ou reflectia, sei lá. "As gotas d'água, que caiam do telhado, faziam música." - amei essa parte
Força, Abços
Obrigada, Telé. Você já tentou sentir a música que as gotas fazem?
ExcluirAbraço!
Parabéns pelo texto, Jane. Sensibilidade que nos emociona. Abraços, amiga.
ResponderExcluirObrigada, Dr. Fábio. É muito bom recebê-lo aqui em meu blog. Abraço.
ExcluirMaravilhoso! Lembrei da minha mãe. lembranças que impulsionam a viver . Abraço!
ResponderExcluirObrigada, Marli. Vez em quando, damos um pulo no passado. Se as lembranças são boas, é importante fazer a viagem. Às vezes, olhar para trás nos dá força para seguir em frente. Agradeço a sua visita. Abraço!
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